quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Sobre a tortura

(b) Sobre a tortura


Fonte: http://aciesordinata.wordpress.com/2010/04/30/textos-essenciais-em-traducao-inedita-38/

A tortura. Aqui, temos três textos a reconciliar. O Papa Inocêncio IV, em 1252, e outros papas da Idade Média concederam aos inquisidores o direito de empregar a tortura. Contudo, em 1953, num discurso a um congresso de direito penal, Pio XII declarou que “A instrução judiciária deve excluir a tortura física e psíquica e a narco-análise, antes de tudo porque lesam um direito natural mesmo se o acusado é realmente culpado, e além disso porque com demasiada frequência dão resultados errôneos.”

Ainda que esse documento não tivesse grande valor magisterial, ocorre que – ainda bem! – o Papa invoca a célebre resposta do Papa Nicolau o Grande aos búlgaros, a qual tem estatuto bem sólido e repreende rispidamente os búlgaros, por, face a um acusado de roubo, “espancar-lhe a cabeça e furar-lhe os lados com pontas de ferro até que diga a verdade”. Esse tratamento, diz o Papa, “nem a lei divina nem a lei humana admitem”.

E agora, quem tem razão?

Convém abrir um livro sério de teologia moral e estudar um pouco o pensamento da Igreja sobre a tortura. Quem escolher Santo Afonso (Theologia Moralis, livro V, [art. III] nn. 202-5 – é o livro de teologia moral mais aprovado) aprenderá que a tortura é intrinsecamente ilícita salvo em certas condições extremamente limitadas:

1. A culpabilidade deve já ter sido estabelecida com certeza moral;

2. O sofrimento aplicado não deve ser insuportável a ponto de fazer até mesmo um inocente se acusar;

3. Numerosas categorias de pessoas estavam isentas de toda a tortura;

4. Toda a confissão assim obtida era inutilizável a menos que fosse livremente confirmada, sem tortura, no dia seguinte;

5. Se a tortura não obtivesse resultado, não se poderia recorrer a ela novamente.

Aí estão as condições de trabalho da Inquisição. Encontram-se expostas de modo similar no célebre Malleus Maleficarum. Ora, visivelmente, aquilo que Nicolau I condena não se assemelha a isso em nada. E a leitura do contexto das palavras de Pio XII confirma que tampouco ele falava de um tal uso da tortura. “Não é raro que elas cheguem exatamente às confissões almejadas e à condenação do acusado, não por ser ele culpado de fato, mas por sua energia física e psíquica estar esgotada…” A regra que Pio XII deseja ver imposta é a de Nicolau I. Ele não fala de maneira alguma de um emprego da tortura tão limitado e condicionado, a ponto de ela não ser contrária à lei moral, e no qual ninguém mais pensa.

Sem dúvida, se Pio XII tivesse querido pronunciar-se ex professo de maneira doutrinal, por exemplo numa encíclica, sobre a moralidade in se da tortura em todas as suas espécies, teria sido necessária uma definição explícita da tortura que caísse na condenação e uma precisão sobre a natureza exata do “direito natural” por ela lesado.

Esse direito natural, a meu parecer, só pode ser o de não ser privado pela força do domínio moral sobre seus atos, o qual é chamado de liberdade de coerção (“libertas a coactione”). E, presumindo que isso seja exato, constatamos que a tortura permitida à Santa Inquisição era precisamente circunscrita, de sorte a não lesar esse direito nem mesmo ter a aparência de o lesar.

Mas o objetivo de Pio XII não era o de acrescentar um tratado de tortura aos catecismos da fé, mas muito simplesmente dar alguns conselhos ou diretrizes para a implementação de um sistema uniforme de direito internacional (sancionado por tratado). Ele julga desejável que um tal sistema de direito condene a tortura. Esta, ele não a define, pois toda a sua audiência compreenderá bem a quais práticas recentes ou atuais, e de que país, ele faz alusão. Falar de uma exceção puramente histórica, sem atualidade, sem perigo de restabelecimento, pertencente a um contexto puramente eclesiástico, teria posto gratuitamente em perigo a eficácia prática dessa intervenção que se quer soberanamente prática.

Pois nenhum país do século XX quereria reivindicar para si o direito de torturar os acusados sob as condições que a Inquisição observava. E ninguém jamais conceberia ter confiança em quem quer que seja para respeitar um tal sistema fora do caso especial da Igreja, que confiou a sua Inquisição aos filhos de São Domingos.

A conduta da Igreja durante muitos séculos, bem como as intervenções dos Sumos Pontífices sobre o tema durante a época em questão, testemunham claramente a atitude da Igreja, que não pode se enganar em sua conduta nem em suas tolerâncias, assim como em seu ensinamento direto. É a contradição que é imaginária.

Eis aí, refutada, mais uma pretensa autocontradição da autoridade doutrinal estabelecida por Jesus Cristo. Magna est veritas et praevalebit.